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sexta-feira, 19 de abril de 2013



  
 O RIO  
    Tu dizes: da tua mão direita flui um rio azul. Da tua mão esquerda flui o ténue tempo. Mas eu digo-te que o tempo não existe. O tempo é uma estrada circular como o mundo. O rio não é azul porque os rios não são azuis. Os rios são labirintos mágicos e transparentes onde os deuses repousam. Só o céu é azul.
    Tu ficas mudo. Ajoelhas junto ao rio, aos pés de um deus invisível. Dos teus lábios evola-se uma oração muda. A que estranho deus se dirigem os teus lábios? Que prece ou maldição balbucias ainda?
    Hoje todos os barcos estão ancorados. Adensa-se um fumo negro sobre a cidade. E a loucura arrasta-nos para fora dela.
    E eu digo-te que as palavras ainda respiram. Que o vento começa no corpo e as rosas vermelhas resistem. Mas a cidade já não tem razão de ser.
    E digo-te que este é o tempo de partirmos. De procurar o caminho através de labirínticas estradas circulares. Na demanda eterna de um porto seguro. Porque as cordas que nos amarravam a este cais rebentaram. Mas o teu corpo arde. Um rio flui da tua mão esquerda. Um rio azul. Mas só o céu é azul. Azul sete vezes.
    Morres devagar consumido pela erosão do tempo que flui ténue da tua mão direita. Estremeço. Pressinto a tua partida.
    Aos pés do deus invisível fica apenas um corpo translúcido cheio de barcos, âncoras, redes, conchas e peixes a arder.
    Tu já não existes. Só as marés podem nomear o teu nome.
    Outrora o teu corpo possuía o mistério dos bosques. Agora é um barco vazio. Que lugar foste habitar?
    Os meus dedos desprendem-se das cordas que amarravam o barco a este cais e eu parto com as marés, ignorante de paraísos ou prisões, em derradeiro naufrágio.
                                  Maria de Lourdes Simões in Contos de A Mar, Associação Cultural das Velas, 1999

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