O RIO
Tu dizes: da tua mão direita flui um rio
azul. Da tua mão esquerda flui o ténue tempo. Mas eu digo-te que o tempo
não existe. O tempo é uma estrada circular como o mundo. O rio não é
azul porque os rios não são azuis. Os rios são labirintos mágicos e
transparentes onde os deuses repousam. Só o céu é azul.
Tu ficas mudo. Ajoelhas junto ao rio, aos
pés de um deus invisível. Dos teus lábios evola-se uma oração muda. A
que estranho deus se dirigem os teus lábios? Que prece ou maldição
balbucias ainda?
Hoje todos os barcos estão ancorados. Adensa-se um fumo negro sobre a cidade. E a loucura arrasta-nos para fora dela.
E eu digo-te que as palavras ainda
respiram. Que o vento começa no corpo e as rosas vermelhas resistem. Mas
a cidade já não tem razão de ser.
E digo-te que este é o tempo de partirmos.
De procurar o caminho através de labirínticas estradas circulares. Na
demanda eterna de um porto seguro. Porque as cordas que nos amarravam a
este cais rebentaram. Mas o teu corpo arde. Um rio flui da tua mão
esquerda. Um rio azul. Mas só o céu é azul. Azul sete vezes.
Morres devagar consumido pela erosão do tempo que flui ténue da tua mão direita. Estremeço. Pressinto a tua partida.
Aos pés do deus invisível fica apenas um corpo translúcido cheio de barcos, âncoras, redes, conchas e peixes a arder.
Tu já não existes. Só as marés podem nomear o teu nome.
Outrora o teu corpo possuía o mistério dos bosques. Agora é um barco vazio. Que lugar foste habitar?
Os meus dedos desprendem-se das cordas que
amarravam o barco a este cais e eu parto com as marés, ignorante de
paraísos ou prisões, em derradeiro naufrágio.
Maria de Lourdes Simões in Contos de A Mar, Associação Cultural das Velas, 1999