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segunda-feira, 25 de março de 2013

Poema da semana


 

O POETA AINDA EXISTE  
Debruço-me indiferente
Da amurada do meu navio.
Colho uma lágrima. A cidade dorme
Dorme velada e liricamente…
Falam-me do cais
Os barcos à deriva.
Nos longes
Do fundo-mágoa da tarde
As araucárias
E os metrosíderos
Desenham seus perfis.
Debruço-me de novo
Da amurada do meu navio.
A viagem é breve. Demora
                                     um instante.
Um só porto
Onde não há viageiros de mentiras
                                lugares preteridos
                                     políticos meretrizes
                                           manicómios pintados de amarelo
                                                                 militares de tarimba
                                                                   Pinturas à Van Gogh
Nem o pesadelo cotidiano da insulina.
Silêncio. Ouvem-se trindades ao longe…
E a noite vem naturalmente
Com seus guisos de oiro-sombra.
Eu despeço-me dos contornos
Dessa estranha cidade lírica
Onde a saudade
Foi o único motivo do meu canto.
Apetece-me acenar…
Não não vale a pena
Descobrir novos caminhos
Na distância que se esfuma.
- E o meu aceno é mágoa.
A verdadeira pátria
(A pátria ideal)
Da justiça, da liberdade
E do pão merecido
Não fica longe.
É muito para cá
Desse inútil véu de bruma.
Hesito. Interrogo-me:
Vou? Não vou?
E a alma?
Já não importa?
Mas
Porque não tentar
De novo o dia?
(Falam-me de regresso os barcos à deriva.)
Pois não há ilhas
Ainda por descobrir?
(Ai
          o silêncio do meu horto!...
Que é feito, coração, da tua voz,
Que eu já não te entendo nem oiço?)
Há-de vir ainda muita manhã
Com as janelas escancaradas.
O mundo há-de ser
Só paz e coração
Sem o limite de fronteiras
Com todos os pássaros livres
E os homens a beijarem
Dia a dia
As pétalas das rosas
Convivendo de almas dadas
Esquecidos dos anjos de cinismo
                                           e hipocrisia
Que foram em tempos.
Sim. Um dia ainda…
Talvez já amanhã.
Ergue-te, minha alma! À renúncia.
                         É a hora de compor
E recompor horizontes.
(Veio bela e nua
E sem palavras.)
As mentiras denudam-se
Que as trouxeram
De um país de longe.
Só aqui continua
(Só aqui!)
Tudo presente.
O poeta ainda existe.
Existe sempre.
Almeida Firmino in Narcose