Pesquisar neste blogue

sábado, 21 de março de 2009


ANUNCIAÇÃO 


Surdo murmúrio do rio, 

a deslizar, pausado, na planura. 

Mensageiro moroso 

dum recado comprido, 

di-lo sem pressa ao alarmado ouvido 

dos salgueirais: 

a neve derreteu 

nos píncaros da serra; 

o gado berra 

dentro dos currais, 

a lembrar aos zagais 

o fim do cativeiro; 

anda no ar um perfumado cheiro 

a terra revolvida; 

o vento emudeceu; 

o sol desceu; 

a primavera vai chegar, florida. 


Miguel Torga 


FLORES 


Era preciso agradecer às flores 

Terem guardado em si, 

Límpida e pura, 

Aquela promessa antiga 

Duma manhã futura. 


Sophia de Mello Breyner 



 QUADRAS AO GOSTO POPULAR 


I

Tome lá, minha menina, 

O ramalhete que fiz. 

Cada flor é pequenina, 

Mas tudo junto é feliz. 

II

Teu vestido, porque é teu, 

Não é de cetim nem chita. 

É de sermos tu e eu 

e de tu seres bonita. 

III

Andorinha que vais alta, 

Porque não me vens trazer 

Qualquer coisa que me falta 

E que te não sei dizer? 

IV

Água que passa e canta 

É água que faz dormir... 

Sonhar é coisa que encanta, 

Pensar é já não sentir. 


Fernando Pessoa 

Amar!


Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar!  Amar!  E não amar ninguém!

Recordar?  Esquecer?  Indiferente!...
Prender ou desprender?  É mal?  É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!


E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...

Florbela Espanca

Quando Vier a Primavera

Quando vier a Primavera, 
Se eu já estiver morto, 
As flores florirão da mesma maneira 
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada. 
A realidade não precisa de mim. 

Sinto uma alegria enorme 
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma 

Se soubesse que amanhã morria 
E a Primavera era depois de amanhã, 
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã. 
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo? 
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo; 
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse. 
Por isso, se morrer agora, morro contente, 
Porque tudo é real e tudo está certo. 

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem. 
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele. 
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências. 
O que for, quando for, é que será o que é. 

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"